EXTRA ECCLESIAM NULLA SALUS

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A Bíblia: Um Livro Para Católicos



Todo autor escreve para um público específico.

Ao compor a sua obra, o autor normalmente direciona o texto para um determinado grupo. Embora pessoas de fora do grupo possam ter acesso ao livro, elas não serão capazes de desfrutar de todo o conteúdo da obra, por faltar-lhes uma série de elementos que tornam a obra em questão obscura em diversos aspectos.

Quem escreve livros de medicina fará uso de um vocabulário e de construções que são típicas daqueles que exercem ou estudam a arte de Hipócrates. Aqueles que não estiverem inseridos no "mundo" da medicina provavelmente encontrarão muitas dificuldades quando se puserem a ler uma obra sobre, por exemplo, histologia.

Ademais, escrever um livro para que um determinado grupo possa lê-lo significa supor a existência deste grupo. Pois, apenas assim o autor poderá decidir-se sobre qual idioma utilizar; sobre o modo de se utilizar este idioma; sobre o que escrever para que a mensagem seja compreendida corretamente; entre outras medidas que serão tomadas.

Percebemos, desta maneira, que jamais poderemos escrever um livro que seja de interesse dos Yutumpinianos. E por qual motivo não poderemos fazê-lo? Pelo simples fato de os Yutumpinianos não existirem.

Mas o que tudo isso tem a ver com a Biblia? E que história é essa de que ela é "um livro para católicos"? Vamos então entrar no tema "Bíblia" propriamente dito...Contudo, o que é a Bíblia? Certamente muitos já tem a resposta na ponta da língua: é a Palavra de Deus. Mas uma outra pergunta se impõe: e quem disse que a Bíblia é a palavra de Deus?  Bem, vamos dar início a nossa análise.

Primeiramente devemos entender que a Bíblia não é um livro único; um livro que fora escrito ininterruptamente do começo ao fim. Como o próprio nome indica (a palavra "bíblia" significa "livros", em grego), a Bíblia é um composto de livros, somando 73 livros (sei que alguns começam a se agitar em suas cadeiras. Calma, tudo será explicado!).

Os livros da Bíblia (bem como as epístolas) foram escritos ao longo de séculos e séculos. Escrevia-se para se atender às necessidaes doutrinais que surgiam acerca da Revelação. O início dos registros sagrados deve-se aos judeus, conforme bem lembra D. Estevão Bettencourt, em seu curso bíblico:
As passagens bíblicas começaram a ser escritas esporadicamente desde os tempos anteriores a Moisés; é de notar que a escritura era uma arte rara e cara na antiguidade. Moisés foi o primeiro codificador das tradições orais e escritas de Israel, no século XIII a.C. - Essas tradições (leis, narrativas, peças litúrgicas) foram sendo acrescidas aos poucos por outros escritos no decorrer dos séculos, sem que os judeus se preocupassem com a catalogação das mesmas...Assim foi-se formando a biblioteca sagrada de Israel.
Com o advento do cristianismo, não foi diferente. A necessidade de registrar os fatos ocorridos durante a vida de Nosso Senhor levou muitos cristãos a narrar o que viam ou ouviam. Conforme o Evangelho difundia-se, os apóstolos escreviam narrativas e exortações destinadas ao público cristão, ou seja, à Igreja. Estes livros sagrados encontravam o seu uso na liturgia, eram lidos durante os ofícios sagrados. Era na Missa que se lia para os fiéis aquilo que saíra da pena dos apóstolos.

Já ouço os clamores: "Como assim os cristãos primitivos iam à Missa? Que absurdo! Missa foi algo criado pelos homens muitos anos depois de Cristo!". Como o tema aqui não é "Missa", não aprofundarei o assunto. Mas, aos interessados, citarei um trecho da obra de São Justino, que viveu no segundo século de nossa era, chamada "I Apologia".   Vejamos o que ele diz do culto cristão primitivo.         
                       
      No chamado dia do Sol, reúnem-se em um mesmo lugar todos os que moram nas cidades ou nos campos. Lêem-se as memórias dos apóstolos ou outros escritos dos profetas, na medida em que o tempo permite.  
      Terminada a leitura, aquele que preside toma a palavra para aconselhar e exortar os presentes à imitação de tão sublimes ensinamentos.
        Depois, levantamo-nos todos juntos e elevamos as nossas preces; como já dissemos acima, ao acabarmos de rezar, apresentam-se pão, vinho e água. Então, o que preside eleva ao céu, com todo o seu fervor, preces e ações de graças, e o povo aclama: Amém. Em seguida, faz-se entre os presentes a distribuição e a partilha dos alimentos que foram eucaristizados, que são também enviados aos ausentes por meio dos diáconos.
        Os que possuem muitos bens dão livremente o que lhes agrada. O que se recolhe é colocado à disposição do que preside. Este socorre os órfãos, as viúvas e os que, por doença ou qualquer outro motivo se acham em dificuldade, bem como os prisioneiros e os hóspedes que chegam de viagem; numa palavra, ele assume o encargo de todos os necessitados.Reunimo-nos todos no dia do Sol, não só porque foi o primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, criou o mundo, mas também porque neste mesmo dia Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Crucificaram-no na véspera do dia de Saturno 
(Eis aí! A Missa a que assistimos ainda hoje é essencialmente a mesma dos tempos primitivos! Para maiores informações, sugiro que recorram à obra citada e que leiam os capítulos 66 e 67. A propósito, o "dia do Sol" é, em latim, o solis dies, ou seja, o domingo).

Mas, voltando ao tema. Uma vez visto que o culto cristão primitivo era a Missa, e uma vez entendido que os livros escritos eram para ser lidos nestes cultos, podemos avançar para um próximo passo.

Será que existiam, por este período, falsos escritos que poderiam infiltrar-se nas comunidades? A resposta é um sonoro sim. E foi justamente para combater erros que estavam começando a se propagar entre os cristãos através de escritos enganosos que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, achou por bem compilar todos os livros sagrados em um só volume, e fazer com que estes fossem lidos nas assembleias.

Assim, podemos perceber que quando diversos escritos começaram a circular entre os cristãos e a causar uma série de confusões, pois muitos destes escritos (os chamados "Apócrifos") contrariavam aquilo que era o ensinamento corrente da doutrina cristã, a Igreja teve que reagir. Diante do perigo de se propagar falsas doutrinas na Igreja, esta achou por bem definir quais seriam, afinal, os livros verdadeiramente inspirados por Deus. Livros que poderiam ser lidos nas Missas sem que se apresentasse quaisquer riscos para os fiéis que ali estivessem presentes.

Logo, até este fato, não se podia falar de Bíblia propriamente dita. Não se tinha, ainda, uma posição oficial das autoridades cristãs acerca da canonicidade dos livros. Sabemos que a própria Bíblia não nos diz quais são os livros inspirados ou não, assim, apenas uma autoridade legítima poderia fazê-lo. E quem o fez foi a Hierarquia da Igreja. Lembremos que se não fosse a Igreja não estaríamos absolutamente certos da veracidade doutrinal nem mesmo dos Evangelhos. Foi a Igreja que ensinou quais livros são veradadeiros, autênticos.

E quais livros estavam contidos na Bíblia destes cristão primitivos? Sabemos que há divergências entre os cristãos acerca de alguns livros do Antigo Testamento. Antes de respondermos diretamente a esta pergunta, gostaria de dar espaço a um interessante comentário de Dom Estevão Bettencourt:
Todavia, no século I da era cristã, deu-se um fato importante: começaram a aparecer os livros cristãos (cartas de S. Paulo, Evangelhos...), que se apresentavam como a continuação dos livros sagrados dos judeus. Estes, porém, não tendo aceito o Cristo, trataram de impedir que se fizesse a aglutinação de livros judeus e livros cristãos. Por isto, segundo bons autores modernos, vários rabinos reuniram-se no sínodo de Jâmnia ou Jabnes ao Sul da Palestina, por volta do ano 100 d.C., a fim de estabelecer as exigências que deveriam caracterizar os livros sagrados ou inspirados por Deus. Foram estipulados os seguintes critérios:

1) o livro sagrado não pode ter sido escrito fora da terra de Israel;
2)...não em língua aramaica ou grega, mas somente em hebraico;
3)...não depois de Esdras
4)...não em contradição com a Torá ou Lei de Moisés.

Em consequência, os judeus da Palestina fecharam o seu Cânon sagrado sem reconhecer livros e escritos que não obedeciam a tais critérios. Acontece, porém, que em Alexandria (Egito) havia próspera colônia judaica, que vivendo em terra estrangeira e falando língua estrangeira (o grego), não adotou os critérios nacionalistas estipulados pelos judeus de Jâmnia. Os judeus de Alexandria chegaram a traduzir os livros sagrados hebraicos para o grego entre 250 e 100 a.C., dando assim origem à versão grega dita "Alexandrina" ou dos "Setenta Intérpretes". Essa edição grega bíblica encerra livros que os judeus de Jâmnia não aceitaram, mas que os de Alexandria liam como palavra de Deus; assim os livros de Tobias, Judite, Sabedoria, Baruque, Eclesiástico (ou Siracides), 1/2 Macabeus, além de Ester 10, 4 - 16, 24; Daniel 3,24 - 90; 13-14.

Podemos dizer, pois, que havia dois cânones entre os judeus no início da era cristã: o restrito da Palestina, e o amplo de Alexandria.

Ora acontece que os Apóstolos e Evangelistas, ao escreverem o Novo Testamento em grego, citavam o Antigo Testamento, usando a tradução grega de Alexandria, mesmo quando esta diferia do texto hebraico; tenham se em vista Mt 1,23 ( --> Is 7,14); Hb 10,5 ( --> Sl 39/40,7); Hb 10,17s (Hab 2,3s); At 15,16s (Am 9,11). O texto grego tornou-se a forma comum entre os cristãos; em consequência o Cânon amplo, incluindo os sete livros e os fragmentos citados, passou para o uso dos cristãos.

Verificamos também que nos escritos do Novo Testamento há citações implícitas dos livros deuterocanônicos. Assim, por exemplo, Rm 1, 19 - 32 --> Sb 13, 1 - 9; Rm 13,1 --> Sb 6,3;
Mt 27, 43 --> Sb 2, 13.18; Tg --1, 19 --> Eclo 5, 11; Mt 11, 29s --> Eclo 51, 23 - 30;
Hb 11, 34s --> 2 Mc 6, 18 - 7, 42; Ap 8, 2 --> Tb 12, 15.

Deve-se notar, por outro lado, que não são (nem implicitamente) citados no Novo Testamento livros que, de resto, todos os cristãos têm como cânonicos; assim Eclesiastes, Ester, Cântico dos Cânticos, Esdras, Neemias, Abdias, Naum, Rute.
Esta versão dos Setenta, na qual estão inseridos os sete livros ausentes no catálogo de muitos irmãos separados, era tão valorizada na igreja primitiva que, conforme atesta Dom Estevão,
(...) das 350 citações do Antigo Testamento no Novo, 300 são tiradas da versão dos Setenta.
E, conforme já o dissemos, mas cabe aqui um reforço:
A própria Bíblia não define o seu catálogo. Portanto, este só pode ser depreendido mediante a Tradição (= transmissão) oral, que de geração em geração foi entregando os livros sagrados ao povo de Deus, indicando-os ao mesmo tempo, como livros inspirados, e por conseguinte, canônicos. Essa tradição via oral fala até hoje pelo magistério da Igreja (...).
Aqui vemos como é incoerente afirmar que se despreza a Tradição e que se fica apenas com a Bíblia. A própria Bíblia é fruto da Tradição da Igreja.

Para terminar com este assunto, uma prova cabal da importância do texto grego do Antigo Testamento para os cristãos, está no fato de utilizarmos os nomes gregos dos livros (Gênesis, Êxodo, etc.) e não, os nomes em hebraico.

E aquela história de que a Igreja Católica adicionou livros à Bíblia no século XVI?

A resposta para esta pergunta é simples: isso é uma mentira deslavada.

Vejamos o que decidiu o Concílio regional de Cartago, século IV, acerca do Cânon:
Parece-nos bom que, fora das Escrituras canônicas, nada deva ser lido na Igreja sob o nome 'Divinas Escrituras'. E as Escrituras canônicas são as seguintes: Gênese, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, quatro livros dos Reinos [Samuel e Reis], dois livros dos Paralipômenos [Crônicas], Jó, Saltério de Davi, cinco livros de Salomão, doze livros dos Profetas, Isaías, Jeremias, Daniel, Ezequiel, Tobias, Judite, Ester, dois livros de Esdras e dois [livros] dos Macabeus. E do Novo Testamento: quatro livros dos Evangelhos, um [livro de] Atos dos Apóstolos, treze epístolas de Paulo, uma do mesmo aos Hebreus, duas de Pedro, três de João, uma de Tiago, uma de Judas e o Apocalipse de João. Isto se fará saber também ao nosso santo irmão e sacerdote, Bonifácio, bispo da cidade de Roma, ou a outros bispos daquela região, para que este cânon seja confirmado, pois foi isto que recebemos dos Padres como lícito para ler na Igreja.
Vê-se, portanto, que a canonicidade de livros como Tobias e Macabeus é reconhecida por cristãos há séculos. As versões da Bíblia anteriores à pseudo-Reforma, como a Bíblia de Gutenberg, trazem todos os 73 livros sagrados. Não foi a Igreja que adicionou livros à Bíblia, foram seus adversários, que tanto dizem amar e obedecer às Escrituras, que retiraram 7 deles da mesma Bíblia.

E se, conforme vimos, houve uma compilação de livros para que estes fossem lidos nas Missas, vemos então que a Bíblia fora escrita e compilada por católicos e para os católicos, pois a Igreja primitiva, a noiva de Cristo, era (é e sempre será) Católica, conforme vimos no post A qual Igreja pertenciam os primeiros cristãos?. Ademais, as outras comunidades cristãs ainda não existiam quando se decidiu sobre o Cânon bíblico, e, assim, a Bíblia não podia ter sido compilada tendo-se em vista tais comunidades, conforme vimos em nosso exemplo hipotético com os Yutumpinianos.

Eis a razão pela qual a Bíblia, quando interpretada à margem do Magistério da Igreja, é causa de conflitos e de desunião, ao passo que, quando valorizada juntamente com a Tradição que vem dos Apóstolos e que está preservada na única Igreja de Cristo, ela ganha um sentido vivo e pleno, e é, antes de tudo, causa de união entre cristãos, os quais professam uma única fé que já dura dois mil anos e que durará eternamente.

Pax Domini Sit Semper Nobiscum

William Bottazzini

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