EXTRA ECCLESIAM NULLA SALUS

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A Igreja era contra a dissecação dos cadáveres?

Um mito na aula de anatomia

Leonardo da Vinci dissecou um paciente idoso e não teve nenhum problema com isso, observa Christopher Howse.

Por Christopher Howse
10 de junho de 2009

Eu achava que era imune a mitos populares e a erros do vulgo quando o tema versava sobre ciência e religião. Quase ninguém acreditava em uma Terra plana na Idade Média, eu já sabia disso. Também não pensava quimericamente que Einstein acreditava em um Deus pessoal como o da Bíblia.

Mas eu fiquei abalado ao descobrir que estava errado ao supor que a Igreja medieval proibia a dissecação humana. A desilução veio da parte da Katharine Park, de Harvard, autora de uma história da dissecação humana. Eu não li a obra, pois esta poderia interferir em meu descanso noturno, mas li o capítulo escrito pela autora em um livro esplêndido chamado Galileo Goes to Jail and Other Myths about Science and Religion (Harvard, R$ 20,95).

O editor do livro e mais 11 de seus 25 colaboradores são agnósticos ou ateus, mas tomam o cuidado de “deixar as coisas bem claras". A eles juntam-se nesta tarefa sete protestantes, um judeu, um muçulmano, um budista, um católico devoto e um espinosista - que, como Einstein, acredita em uma espécie de Deus de ordem cósmica.

Minha ideia ignorante era de que a Igreja medieval havia sido hostil a aulas de anatomia que faziam uso de cadáveres humanos. Eu teria aceitado a alegação de que o Papa Bonifácio VIII as havia banido em uma Bula intitulada “Feritatis Detestande” ("Da detestável crueldade") em 1299.

Por que não? Nossos corpos são feitos para ser templos do Espírito Santo e não podem ser submetidos a qualquer uso antigo. Nós não devemos mutilar-nos, como, segundo se alega, Orígenes o fizera. Sabemos, aliás, que os nossos corpos ressuscitarão -  claro que não seríamos tolos o bastante a ponto de recear que a falta de pedaçoes impediria Deus de cumprir a sua promessa a este respeito. Nós reverenciamos os restos mortais de santos, pois eles se referem às suas vidas santas, e nós tratamos os corpos dos mortos com cortesia piedosa, porque eles eram parte de um ser humano feito à imagem de Deus.

Então Vesalius, o anatomista do século XVI, segundo escreve Andrew Dickson Wright em seu History of the Warfare of Science with Theology in Christendom
(1896) "arriscou passar pelos perigos mais terríveis e, especialmente, a acusação de sacrilégio, fundamentada nos ensinamentos da Igreja". Mas a coisa não é assim, conforme explica a professora Park.

A dissecação humana não parece ter sido praticada regularmente nas culturas pagã, judaica, cristã ou muçulmana antes do final do século 13, segundo escreve, exceto por alguns estudiosos gregos no terceiro século a.C. em Alexandria.

A dissecação a serviço de ensino e da pesquisa teve o seu início em Bolonha no ano de 1300, inspirada pelo interesse renovado nas obras de Galeno, escritor do segundo século. O primeiro livro de anatomia acerca da dissecação humana foi escrito por Mondino de’ Liuzzi (1275-1326), e foi um marco no ensino universitário do século XVI. Da Itália, a dissecação espalhou-se pelo norte, sendo realizada em universidades de ambas as regiões, católicas e protestantes, no século XVI.

O que a Bula de Bonifácio proibia era ferver a carne dos cadáveres a partir dos ossos como uma prática funerária. A proibição foi tomada de forma estrita, e Mondino observou que esta o impedia de ferver os ossos da orelha a fim de torná-los mais fáceis de serem analisados. Mas poderiam ser concedidas dispensas à lei.

Não conheço nenhum caso em que um anatomista fora processado”, escreve a professora Park , “e nenhum caso em que a Igreja haja rejeitado o pedido de dispensa.”

Os anatomistas não roubavam os túmulos porque a dissecação era proibida. O roubo a tumúlos era proibido tanto pelas autoridades eclesiásticas quanto pelas seculares, antes e depois de os anatomistas terem recorrido a ele. Os cadáveres eram roubados porque as famílias não queriam que seus parentes fossem publicamente dissecados. A exposição de parentes mortos era vergonhosa, mas autopsias privadas eram realizadas sem medos.

Assim, Leonardo dissecou um paciente idoso que havia sido seu amigo no hospital de Santa Maria Nova, em Florença. Como artista, ele não tinha legitimidade para pedir um cadáver para realizar uma pesquisa médica, mas ele não teve problemas com isso.

Devo meus agradecimentos à professora Park por desvencilhar-me da teia de um mito falso. Agora é respirar ar fresco.

Traduzido por William Bottazzini




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